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domingo, 28 de julho de 2013

"Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás..."

Manhã de consulta médica. Chego bem antes do horário, mas já sei que vou esperar. Se o médico atrasar, tudo bem. Paciente, jamais.
  Carteira de identidade e cartão do plano entregues, e a atendente me pede para aguardar. É uma figura: cinquentona, cabelos desgrenhados, elétrica, dedilhando ainda insegura aquele monte de teclas do computador (seu nervosismo me faz lembrar com saudade de Dirce Migliaccio na pele da saltitante Judicéia, a mais espevitada das três irmãs Cajazeiras da novela O Bem Amado, de Dias Gomes). Sim, tudo agora é via internet, mas a papelada continua a mesma. Pior: talvez hoje tenha até mais papel que antes. Antigamente (nem tão “antigamente” assim), bastavam as fichas preenchidas à caneta ou lápis... e uma autorização do convênio, feita por telefone e/ou fax. Enfim, são os novos tempos. É tolice querer lutar contra.
  — João Felipe, o senhor pode vir aqui?
  “E se eu disser que não?”, tenho vontade de rebater. Porém obedeço calado. Parece incrível, mas a verdade é que ainda não me acostumei: só me lembro desse primeiro nome quando alguém estranho me chama. E não gosto. Não me identifico (nada, nada mesmo!) com esse tal “João”. É outro, não sou eu. Bem, isso não vem ao caso agora; é apenas mais uma de minhas (muitas) birras.
  No balcão, ela explica que não é preciso assinar. Quer dizer, não da forma “antiga”, mas com a digital do indicador. “Estudamos tanto”, penso, enquanto comprimo a ponta do dedo no leitor ótico (ou o que for aquela geringonça), “descobrimos curas para diversas doenças, fomos até a Lua, estamos quase construindo colônias de férias em planetas distantes, e pra quê? Pra voltar a assinar com o dedo?” A atendente sorri solidária, como se tivesse lido meus pensamentos.
  Volto a me sentar e, quase trinta minutos depois da hora marcada, finalmente chega a minha vez de entrar na sala do urologista. Entro. Sou educado, cumprimento. Pura perda de tempo; o fulano nem olha na minha cara, segue controlando em um caderno a quantidade de clientes atendidos até aquele momento e para quais planos de saúde deverá enviar a fatura no final do mês. A atendente já faz isso, mas ele precisa comparar a sua contagem com a dela. Imaginem se “escapa” um paciente “sem pagar”! Pois é... Não duvido que desconte do salário da funcionária esse “erro imperdoável”. E, não contente, ainda a ameace: “Da próxima vez, velha burra, rua!”
  Depois de um tempo imaginando “coisas” (mania de ficcionista), tento dar início a um diálogo.
  — Doutor, trouxe alguns exames, solicitados por outros especialistas...
  Ameaçado em sua “autoridade” médica (leia-se: de "semideus"), ele me fulmina com os olhos. Sobrancelhas arqueadas, não está nem um pouco satisfeito em ter que analisar exames que outros pediram. Antes que ele se irrite ainda mais, tento contornar a situação:
  — É para não repetirmos o que já foi feito. Detesto agulhas, sabe?
  — Quem gosta disso é costureira e faquir, não?
  Ufa! Humor! Que alívio! Eu já estava achando que não iria encontrar qualquer sinal de vida inteligente (minimamente humano) no comando daquele corpo.
  Faz um gesto seco: entedo que preciso lhe entregar os exames.
  — O cardiologista já deve ter lhe alertado sobre a contagem de triglicerídeos e do colesterol, não? Ah, sim... Um pouquinho de sangue na urina, mas nada que possa assustar.
  Explico que é exatame
nte por isso que o procurei: sangue + urina = morte dando os primeiros sinais. Antes que alguém pergunte, sim, ficcionistas também são trágicos.
  — É bom dar uma olhada, não?
— pergunto timidamente.

   — O senhor já teve problema de cálculo renal?
  Digo não e aviso:
  — Sabe, doutor, na minha família tem três tipos de gente: as que são levadas pelo câncer, as suicidas e as teimosas, que não morrem de jeito nenhum. Como estou na idade crítica, não me inscrevi na lista dos que se matam e não me considero imortal, por precaução, seria bom fazer exame de próstata.
   Ele me olha com desdém. Sinceramente, não sei se o sujeito sorri ou se faz cara de espanto. Em alguns casos (quando, por exemplo, a feiura se mistura com a empáfia da pessoa), fica muito difícil identificar determinadas expressões faciais, por mais óbvias que elas sejam.
  Em seguida, volta a tratar da papelada. Cada plano, um formulário diferente. Nesse momento, confesso que entendo o governo atual... Talvez devêssemos, de fato, aumentar em mais dois anos os cursos de medicina para que os futuros doutores aprendam a lidar com a maldita burocracia dos convênios. E, assim, não fiquem tão estressados com os pacientes no ato da consulta.
  Mais alguns momentos de silêncio, e ele entrega a requisição. Novo exame de sangue, agora para ver se há indícios de tumor na próstata. Outros de urina. Mas ele acha que não vai dar nada.
  — Às vezes, sabe, uma pedrinha. Todo mundo tem. É só beber bastante água.
  — Só isso, doutor?
  Ele ergue novamente as sobrancelhas. Agora, o subtexto é: “vai querer saber mais do que eu, vai?” Mesmo ciente do risco de, no mínimo, levar um tiro na testa, decido contestá-lo:
  — E todas aquelas campanhas na tevê, depois de “tal” idade, faça exame de toque...?
  Do alto da sua arrogância médica, ele interrompe, taxativo:
  — Bom, se o resultado do PSA apontar indícios de tumor, a gente faz o exame clínico.
  E indica a porta com um gesto de cabeça. Estava encerrada a consulta, que durou menos de dez minutos. Não concordo, mas o entendo: precisa atender o mais depressa possível o máximo de pacientes conveniados para, no final do mês, poder enfiar alguns trocados a mais no bolso e não achar que escolheu a profissão errada. Sim, porque deve custar caro manter o status de doutor e o lustro no ouro do imenso pedestal que o mantém à distância do resto dos mortais.
  Frustrado, vou saindo da sala. Não é a primeira vez que deixo uma consulta com a sensação de ter gasto meu tempo à toa.
 
Enfim, “que venham os jalecos cubanos”! Talvez, por ainda não estarem acostumados com a tecnicidade e a exagerada especialização da maioria dos médicos brasileiros, eles sejam, no mínimo, mais humanos e, oxalá, menos mercenários.